Por Paula Coradi*
O governo Lula completa 100 dias em um cenário muito diferente do que foram seus dois mandatos anteriores. As incertezas em relação às perspectivas econômicas, a emergência de um bloco de extrema-direita com influência num amplo setor da sociedade brasileira, a hiper fragmentação do Congresso Nacional e a devastação promovida por seu antecessor no governo são apenas alguns dos elementos que diferenciam o momento que vivemos daquele em que Lula iniciou seu primeiro governo, vinte anos atrás.
Os ataques golpistas do dia 8 de janeiro demonstraram que a polarização política é um elemento que estará presente ao longo de todo o governo. A resposta rápida e contundente nesse episódio mostrou a capacidade de articulação do governo federal com os demais poderes. A afirmação e defesa da democracia marcou a disputa de narrativas durante os primeiros dias de governo e ampliou sua legitimidade política. A recente pesquisa do Datafolha reafirma esse panorama: o índice de aprovação do governo Lula é de 38% e a reprovação está em 29%. A extrema-direita no Brasil hoje se apresenta como uma força política com capilaridade e base social.
Nesses cem primeiros dias, o governo tomou medidas que deram o tom de como pretende abordar determinados temas. A denúncia da crise social na terra indígena Yanomami e as medidas tomadas para enfrentar a situação, que passaram da ajuda humanitária ao enfrentamento ao combate ao garimpo ilegal em Roraima e parte do Amazonas, foram um claro sinal de mudança de rumos em relação ao governo anterior. A retomada de programas sociais como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, a retirada da PEC 32 (Reforma Administrativa) e da PEC 191 (que previa a liberação de mineração em terras indígenas); o projeto de lei que garante a igualdade salarial entre homens e mulheres e a retirada de sete estatais do Programa Nacional de Desestatização são outras medidas que valem ressaltar como exemplos da mudança de rumos em relação ao governo Bolsonaro.
Na economia, o cenário é de desaceleração global após pandemia e de desestruturação das cadeias produtivas em diferentes setores. A Guerra na Ucrânia mantém a inflação elevada e intensifica a crise energética na Europa. No Brasil, a inflação em 2022 fechou em 6%, a taxa de juros continua acima dos 13% e o desemprego atinge 8%, com quase 40% dos trabalhadores e trabalhadoras na informalidade. Esses números refletem os impactos das políticas de desregulamentação implementadas por Temer e Bolsonaro, como a reforma trabalhista, a Lei das Terceirizações, dentre outras. No plano macroeconômico, o governo se bate com as consequências do Teto de Gastos e da autonomia do Banco Central, que limitam a margem de manobra para a ampliação de investimentos produtivos e o aumento dos gastos públicos. A disputa pública entre Lula e Campos Neto em torno da taxa de juros é um exemplo dessa tensão.
As propostas em torno das novas regras fiscais, apresentadas pelo Ministério da Fazenda, tentam responder a esse cenário. Na prática, estabelece um novo teto de gastos de 2,5% acima da inflação caso haja aumento da arrecadação no ano anterior – mais flexível em comparação com a EC 95 – e um piso de 0,6%. Além de serem valores insuficientes considerando o cenário econômico em que o país vive, os percentuais podem ter efeito pró-cíclico em caso de desaceleração da economia. Por isso, a proposta deve ser alvo de críticas de setores mais à esquerda.
A composição atual do Congresso e do Senado, formado majoritariamente por setores da direita, é outro fator que deve gerar dificuldades para o governo Lula. Embora tenha conseguido uma vitória importante com a PEC de transição, as votações em torno das novas regras fiscais e da reforma tributária serão testes de fogo para o governo, especialmente num momento de baixa mobilização social.
Até agora, o governo Lula tem acertado. Se compararmos com Bolsonaro é possível dizer que podemos respirar novamente. Mas respirar é o mínimo fundamental. Porém, não podemos deixar de citar que há contradições a serem enfrentadas. Nas últimas semanas o debate em torno do Novo Ensino Médio (NEM) ganhou um grande espaço. A concepção do NEM parte da ideia ultraliberal de que o problema da educação é uma questão apenas de gestão, não de investimento. É um projeto perverso que tem como objetivo sucatear o ensino público. A suspensão, já anunciada pelo governo, é insuficiente. A medida precisa ser revogada, como reivindicam os movimentos ligados à educação, como UNE e CNTE.
A atenção em relação à situação dos povos indígenas foi a área onde o governo foi mais bem avaliado, seguido do combate à miséria, cultura e promoção da igualdade racial. Já a economia é onde o governo é mais mal avaliado, seguido pelas áreas de saúde, segurança pública, desemprego, combate à corrupção e educação. Esse quadro mostra onde o governo precisa avançar mais nos próximos meses e a disputa em torno das agendas prioritárias para os milhares de brasileiros e brasileiras. Embora o governo Lula esteja sob pressão, seja ela promovida pela polarização política, pela presença de setores de direita no governo, pela pressão do mercado ou pelas relações instáveis com o parlamento, é papel das forças de esquerda atuarem em favor das medidas progressivas, sem deixar de apontar onde é possível avançar mais. Devemos também incentivar a mobilização popular para que o governo avance, mas também seja cobrado quando necessário. Seguir nas ruas mobilizados com os movimentos sociais e as frentes de massa é fundamental para que o terceiro mandato de Lula dê certo. Sua derrota significaria a volta da extrema-direita e a ameaça do futuro.
*Paula Coradi é historiadora, educadora e Secretária de Organização do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
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