POR UMA PRIMAVERA LGBTQIA+

 

 

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar. – Bertold Brecht.

Contribuição dedicada à toda Primavera Socialista. Ao indígena Tibira, primeiro condenado pelo Estado por sodomia, morto com um tiro de canhão. Às mais de 273 LGBTs mortas de forma violenta no Brasil em 2022. Às nossas que foram marginalizadas, internadas, silenciadas por décadas e tiveram suas vivências negadas. Mas, sobretudo, àquelas que resistem, lutam, avançam e conseguem enxergar o futuro digno e emancipado, que juntes construiremos.

Emancipar a classe trabalhadora significa emancipar à todes.

Queremos construir um mundo emancipado no qual não exista a necessidade de nenhuma sigla, mas antes, de nenhuma definição ou relação de gênero ou sexualidade que tenha a capacidade de servir à opressão de um ser humano sobre outro. Isso porque as definições de gênero, raça e sexualidade foram construídas ao longo da história para justificar o domínio e o exercício de poder de determinados grupos, para controlar os corpos e nossa sexualidade em dinâmicas sociais de exploração.

Em todas as sociedades e agrupamentos humanos houveram diversas relações de gênero e sexualidade, construídas a partir da necessidade de divisão social do trabalho para as tarefas de produção de bens necessários à vida e reprodução da vida. Há, por exemplo, relatos antropológicos de comunidades não binárias, algumas com 5 gêneros. E sociedades nas quais as relações sexuais e afetivas entre pessoas de um mesmo gênero eram compreendidas de forma absolutamente diferentes entre si. Isso nos indica que as relações de gênero e as normas sobre a sexualidade são construções sociais.

No processo de invasão das terras que ficaram conhecidas como Brasil, o colonialismo impôs uma determinada relação de gênero e uma concepção de sexualidade baseadas no patriarcado. Que, por sua vez, é um modelo pré-capitalista de organização da sociedade de classes, cujas origens remontam às origens da família, do Estado e da propriedade privada no ‘tronco civilizatório indo-europeu’. Trata-se de um conjunto de relações e normas que visavam garantir à pessoa com pênis e posses, um domínio sobre a pessoa com útero, para que dela gerassem herdeiros legítimos de determinado patrimônio.

São consequências do patriarcado tanto a opressão do homem sobre a mulher quanto a cis-hetero-normatividade manifestada em um conjunto de normas sociais / morais e jurídicas que estabelecem o ‘normal’ como sendo a identificação de gênero de acordo com o aparelho reprodutor biológico (em uma lógica binária) e a adequação dos desejos sexuais exclusivamente em padrões direcionados ao gênero construído socialmente de forma oposta. Nessa lógica, tudo que foge da norma é pecado, ilegalidade, doença ou promiscuidade, sendo quem não se encaixa na norma indigno de vida e de direitos.

Todas as opressões que foram absorvidas pelo capitalismo são úteis à reprodução do sistema, tanto para dividir a classe e para rotular grupos como mais vulneráveis à superexploração quanto para garantir a hereditariedade da propriedade privada sobre os meios de produção. Opressão e exploração são faces de uma mesma dinâmica social hegemonizada pela mercantilização da vida e acumulação de lucro.

Dada a sua radicalidade quando compreendida de forma classista e interseccional, é necessário afirmar a luta LGBTQIA+ como elemento relevante da nossa estratégia socialista, produzindo novas sínteses e superando definitivamente os ranços de uma esquerda que a relegava a um papel marginal em sua estratégia.  É preciso reconhecer que a classe é diversa, tem gêneros, cores, identidades, fés, tem sonhos, desejos, tesão e vontade de ser feliz.

O movimento LGBTQIA+ e a conjuntura brasileira.

Nós, que não nos encaixamos nas normas da cisgeneridade ou da heterossexualidade, sempre existimos, resistimos e nos movimentamos sob o território brasileiro. Para nos conter, até 1830 vigorava o crime de ‘sodomia’ para o Estado nos punir com ‘pena de morte perpétua (capaz de impedir qualquer forma de ressurreição da carne)’. Depois, até 1985 fomos considerades doentes, com desvio ou inversão sexual, dignas de tratamento manicomial e toda sorte de torturas.

As movimentações e resistências das pessoas não cis-hetero-normativas só conseguiram se tornar movimento, sujeito coletivo social e político, no final da década de 70, animades pelos ventos da revolta de “Stonewall” (1969) vindos dos Estados Unidos, de Maio de 68 vindos da França e do vendaval da redemocratização do Brasil.

Nesses pouco mais de 45 anos, o movimento inicialmente pautado na afirmação homossexual construiu diversos ciclos (que não se superaram, mas se sobreporam). Construímos ONG’s para responder à pandemia de HIV/AIDS e as suas consequências estigmatizantes. Buscamos as institucionalidades para conquistar políticas enquanto construímos as Paradas de Orgulho em uma visão acertada de que o “fervo também é luta”. Ganhamos mais diversidade com a construção dos primeiros coletivos de pessoas T ao passo que houveram conquistas importantes de direitos. E esse processo não se deu isento de contradições, disputas entre frações mais oxigenadas da esquerda e setores liberais. Além da apropriação de elementos da luta pelo mercado.

Apesar dos esforços do movimento, nunca foi aprovada nem uma lei em benefício das LGBTs no Congresso Nacional. Houveram, sim, conquistas importantes de políticas públicas no âmbito do executivo e algumas legislações em parlamentos estaduais e municipais referendando as decisões do STF, criando penalidades administrativas contra discriminações ou ainda aprovando datas como o Dia Municipal de Combate à LGBTfobia. Além da implantação de Conselhos Municipais ou Estaduais dos Direitos LGBTQIA+, que funcionam em poucas cidades ou estados e necessitam da iniciativa do Poder Executivo. No Estado de São Paulo, por exemplo, o governo Tarcísio dificultou seu funcionamento, nomeando seus representantes somente após muita pressão e denúncia. É necessário a implantação da cidadania LGBTQIA+ em todos os âmbitos (Tripé da Cidadania), Conselhos, Coordenadorias e os Plano Municipais, Estaduais e Nacional LGBTQIA.

Foi provocando o judiciário que o movimento teve suas vitórias mais marcantes, a exemplo da conquista do direito à união estável homoafetiva em 2011; ao casamento em 2013; à adoção por casais homoafetivos em 2015; o direito à auto identificação de gênero sem necessidade de autorização judicial, laudo médico ou procedimento cirúrgico em 2018; e a possibilidade de doar sangue em 2020.

É verdade que o Estado brasileiro descriminalizou a ‘sodomia’ muito antes da maioria dos estados ocidentais, mas na prática a pena de morte violenta segue sendo amplamente aplicada por fora dos aparelhos oficiais de repressão, afinal, somos hoje o país que mais mata LGBTs no mundo. E as torturas de ‘cura gay’, que nunca deixaram de existir, hoje reaparecem com força no debate público.

Ao passo que o movimento LGBTQIA+ avançou em afirmação das identidades e conquistas de direitos, a sociedade passou por um avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, tendo como sintomas o fortalecimento da bancada BBB (Bíblia, Boi e Bala) e o fenômeno do bolsonarismo. Alguns intelectuais identificam um “efeito backlash”, ou seja, uma reação social e política contra avanços conquistados no judiciário, como elemento importante da construção da extrema direita.

De fato, é necessário formular melhor a respeito do reacionarismo, seus marcos, causas e os porquês das pessoas LGBTQIA+ terem sido escolhidas como inimigas. Muito além da cortina de fumaça e do pânico moral, há medidas concretas de ataque aos direitos e uma escalada de violência contra pessoas não cis-hetero-normativas, com foco nas pessoas T.

A vitória de Lula em 2022 obstaculizou grande parte dos anseios da extrema direita, mas não a derrotou. E, nesse movimento eleitoral, o movimento LGBTQIA+ teve um papel de destaque ao fazer campanha direta ou indireta não só para Lula mas para muitas candidaturas de LGBTs, sendo o PSOL um dos atores principais em cena por meio de suas figuras públicas oriundas do movimento ou apoiadoras, com destaque para Erika Hilton, Dani Monteiro, Fabio Felix, Bella Gonçalves, Linda Brasil, Ediane Maria, Guilherme Cortez, a Bancada Feminista, o Movimento Pretas, Maya Eliz, Leonel Camasão, Ailton Lopes, Laina Crisóstomo, Robeyonce entre tantas outras eleitas ou não.

O PSOL se tornou um partido protagonista da luta LGBTQIA+ não porque se organizou ou deliberou para ser, mas sim porque tinha alguma inserção em setores mais oxigenados dos movimentos sociais de forma geral e estava receptivo a acolher parcela do movimento e suas pautas, além de ter acumulado por meio das experiências de suas figuras feministas e de quadros que por aqui passaram, como Jean Wyllys, David Miranda, Duda Salabert, e óbvio, Marielle Franco.

Esse protagonismo do PSOL nos abre janelas e possibilidades de atuação mais qualificadas, mas ao mesmo tempo nos impõe responsabilidades como a necessidade de convencimento pedagógico de todo o partido, e, a de auto-organização das LGBTs.

É preciso auto-organização no PSOL e na Primavera Socialista

Apesar do protagonismo do PSOL para a comunidade LGBTQIA+, quando adentramos às fileiras do partido muitas vezes encontramos a ausência de instrumentos de organização, integração e formulação. Além de, não raras vezes, nos depararmos com condutas LGBTfóbicas exercidas por alguns filiados.

Hoje, temos condições de dar maior eficiência à comissão de ética do partido, que deve ser acionada em casos de lgbtfobia. Para além de possíveis denúncias são necessárias ações pedagógicas, de formação e de intermediação de conflitos nos Estados e Municípios envolvendo condutas suspeitas de serem LGBTfobicas, machistas, racistas, opressoras no geral, sendo importante uma pessoa LGBTQIA participar dessas mediações.

Também, é nosso desafio a organização da setorial nacional LGBTQIA+ do PSOL, que apesar de já ter tido um encontro, nunca conseguiu eleger uma coordenação, há apenas um grupo de whatsapp que não é instância, não é representativo e não avança em debate ou tarefa alguma.

No partido, a Primavera Socialista teve papel de destaque ao construir uma contribuição e resolução unificada no 7º Congresso e uma contribuição no 8º Congresso, ambas no sentido de construção da setorial, que até hoje não saiu da esfera das intenções. Mas ela própria é carente de organização, não se tem ainda um censo das pessoas LGBTs da primavera, não tivemos encontro setorial, não temos instância e seus grupos de whatsapp possuem dificuldade de avançar.

Para avançarmos nas nossas tarefas LGBTQIA+, independentemente do resultado mais geral dos rumos da nossa organização (o debate de fusão) é urgente e necessário a auto-organização da Primavera LGBT. Para isso propomos:

  1. Um Mapeamento das LGBTs da Primavera. Recuperando o formulário criado anteriormente ou criando um novo formulário para que possamos identificar as LGBTs da Primavera nos estados e adicionar no grupo nacional da Primavera LGBT
  2. A Construção de uma Plenária Online Nacional das LGBTs da Primavera para debates e deliberar sobre:
    1. A construção de uma comissão para organização da Primavera LGBT com o estabelecimento de um calendário de debates e construção do nosso Encontro.
    2. A construção de uma comissão para dialogar com nosso campo e outras forças do PSOL para executar as resoluções aprovadas nos últimos congressos para a organização da Setorial LGBT do PSOL.

Assinam:

Agnaldo Engel Knevitz – Porto Alegre – RS

Alexandre Herculano Silva – Mogi das Cruzes – SP

⁠Bárbara Bombom-GO

Carlos Cesar Buono – São Paulo/SP

Eline Matos – Salvador – BA

Flávia Dias – MG

Laina Crisóstomo SSA-BA

Larissa Montenegro- São Paulo SP

Leonardo Ferreira Barbosa – Goiânia – Go

Leonel Camasão – Florianópolis/SC

Luís André Lisque Noro de Freitas – Marília – SP

Luis Mahin Domingues- PSOL Rio Grande/ RS

Raffael Rosa – Mogi das Cruzes/SP

Regina Maria Tavares- Setorial LGBTQIA SP e PSOL Mogi das Cruzes- SP

Rodolfo Vianna – São Paulo

Rogério de Lucena Dias – Sumaré/SP

Valdinei Castro de Araujo – Macapá – Amapá

Willian Barros – Macapá AP