Por Natalia Demes*
Logo nos primeiros 13 dias do Governos Lula, a Portaria nº 13 do Ministério da Saúde, de 13 de janeiro de 2023, trouxe um “revogaço” de normativas editadas no período em que o bolsonarismo imperava sobre o Poder Executivo Nacional, quando o Brasil vivenciou o momento dos maiores retrocessos aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Dentre as normativas revogadas, um destaque à Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, do Ministério da Saúde, que impunha que, no atendimento às vítimas de estupro que requeressem o acesso ao aborto legal, o médico e os demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde devessem fazer comunicação formal à autoridade policial local, como condição ao atendimento.
Assim como outras normativas recentemente editadas, a referida Portaria, por iniciativa do Poder Executivo, é fruto da sustentação de uma pauta antiaborto (que incluímos, aqui, no conjunto de narrativas anticiência insistidas por toda a base do governo bolsonarista), amparada na criminalização, com uma pretensão muito evidente de coagir as vítimas de estupro, a fim de que desistam ou deixem de buscar o acesso ao direito de aborto legal.
A revogação da Portaria 2.561/2020 do Ministério da Saúde, portanto, vem como resposta do atual governo à narrativa antiaborto no âmbito das normativas do Poder Executivo Nacional, que impôs uma política de medo, revitimização, retaliação e desinformação às vítimas de estupro.
Como efeito da própria criminalização e o tabu em torno do aborto, o diagnóstico da oferta de serviços de aborto legal no Brasil, especialmente em casos de gravidez por estupro, revela a constante estigmatização presente na forma como os serviços são percebidos pelas usuárias, a partir da postura de profissionais da saúde durante o atendimento, promovendo estratégias de imposição de obstáculos de ordem jurídica e burocrática que resultam na negativa de acesso ao procedimento.
Por vezes, há exigência de Boletim de Ocorrência como condição para realização do procedimento, onerando a vítima de documento desnecessário ou há informação de que na instituição não há médicos disponíveis em virtude de “objeção de consciência”, ocasionando demora injustificada, de modo que, após dias, se perfaz em negativa de atendimento por idade gestacional avançada, superior a 22 semanas (com base em uma norma técnica do próprio Ministério da Saúde, sem amparo legal). Ainda que se trate de caso em que não há qualquer dúvida sobre a ocorrência de estupro (por exemplo, quando se trata de caso de estupro de vulnerável e crianças), ainda assim, as razões da equipe de atendimento de saúde chegam a negar a realização do aborto previsto em lei por entendimentos descoordenados e equivocados, impondo à vítima buscar os meios judiciais para que autorizada a realização de aborto sem que lhe seja imposta a pena prevista no Código Penal.
A obtenção de autorização judicial para o acesso ao serviço passa pela necessidade de representação judicial (ou seja, em termos gerais, um advogado ou a defensoria pública), a fim de que haja a propositura de uma ação perante a Vara Criminal do Tribunal do Júri (por se tratar o aborto de um crime contra a vida), requerendo do juiz uma decisão judicial e a expedição de um alvará a ser apresentado perante o profissional de saúde para, então, ter acesso ao procedimento.
A propositura da ação judicial é o último recurso para acesso ao aborto legal, após a vítima conseguir superar diversos obstáculos (de ordem familiar – por vezes pautados em estigmas ligados à religião ou ao próprio machismo estrutural – de ordem geográfica – por residir em municípios onde não há oferta do serviço de aborto legal – de ordem econômica – impedindo transporte ou o acesso ao judiciário). Por vezes, as vítimas buscam tardiamente o atendimento institucional, mesmo tendo sido estupradas, apenas quando da percepção da gravidez (no caso das meninas, essa percepção pode ser ainda mais tardia).
Nesse sentido, como fruto da pauta antiaborto, o ano de 2022 resultou na edição de normas referentes às atribuições da Defensoria Pública (especificamente no Amazonas, Rio de Janeiro e Paraná), em que o regime jurídico específico foi alterado para contar com a previsão de que caberia à Defensoria a atuação institucional “nas demandas em que seja parte o nascituro para a defesa dos seus direitos” (Lei Complementar 06/1977 referente à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro).
A prática tem sido nomeada como “curadoria” do feto”, apesar de não haver previsão na legislação brasileira, de modo que Defensorias Públicas de 15 Estados (SC, SP, PR, RR, RJ, MS, PI, MT, CE, BA, TO, RO, MG, GO e PB) emitiram nota técnica contra a nomeação de defensor público para representar “interesses do feto”, após dois casos de meninas que engravidaram após estupro e tiveram que recorrer ao judiciário para ter acesso ao aborto legal, mas que, por ordem da Justiça foram nomeados advogados para os fetos, obstaculizando processualmente o acesso ao direito.
O caso requer maior atenção e a busca de meios hábeis reverter manobras que visam a impedir o exercício do direito ao aborto legal e o debate sobre a descriminalização. São pautas, portanto, que não podem arrefecer. Sigamos atentas e fortes, pois superamos um dos momentos mais sombrios no Brasil em se tratando de retrocessos aos direitos sexuais e reprodutivos, mas os efeitos nefastos da própria criminalização do aborto seguem impactando negativamente na promoção de justiça reprodutiva às mulheres e meninas. É pela vida delas. É pelas nossas vidas.
Natalia Demes é advogada, mãe de dois, ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos, diretora jurídica da Associação Humaniza Coletivo Feminista no Amazonas e atualmente Presidenta do diretório municipal do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) de Manaus.
Os artigos de opinião publicados no site são responsabilidade de seus autores e podem não expressar, necessariamente, a opinião da Primavera Socialista.