CONTRIBUIÇÃO FEMINISTA PARA UMA NOVA PRIMAVERA

Coordenação Nacional de Mulheres da Primavera Socialista

I. CENÁRIO: Conjuntura internacional, nacional e do movimento feminista brasileiro

I.i. Das crises do capitalismo e a extrema direita no Brasil

A formulação política da Primavera, do PSOL e até mesmo da esquerda como um todo, caminha no sentido de reconhecer que a atual fase do capitalismo está condicionada às gestões das suas múltiplas crises e as políticas de ajuste e disciplinamento avançado dos corpos explorados por um mercado de trabalho cada vez mais precarizado e informal. Entendemos que essas crises são não só de natureza econômica, mas também, política,
ambiental e cultural. É importante afirmar que nesse mesmo período histórico que vivemos, é consenso entre as teóricas do feminismo, da margem ao centro, a afirmação de que vivemos,
também, uma crise sócio-reprodutiva, e que está umbilicalmente conectada com a plataforma política das várias expressões que têm tomado a extrema direita global na última década. Essa dimensão, uma vez absorvida em nossas análises, nos obriga a um recálculo em nossas leituras, ou ao menos a redução de algumas polêmicas e diferenças interpretativas que ainda se preservam entre nós, como a de que a agenda do movimento feminista é lateral ou complementar à luta de classes, e que as investidas que observamos na experiência neo-fascista do governo Bolsonaro contra os direitos das mulheres e a disputa ideológica contra estas foi e é mera ‘cortina de fumaça’. Figuras como a Michelle Bolsonaro e a ex-ministra Damares (atualmente Senadora – eleita senadora na primeira vez que concorreu a
um cargo eletivo), por exemplo, foram “reduzidas” – da grande mídia ao debate no âmbito da esquerda socialista – a condição de chacota, e as políticas que encampou (expressa em falas como “Menino veste azul, menina veste rosa” e em ações como a defesa da adoção irregular de crianças indígenas, ação para impedir a interrupção da gravidez de uma criança de 10 anos, dentre outras), foi tida como estratégia de distração do bolsonarismo raiz. Essa leitura é um erro e está deslocada da concretude das forças sociais em disputa na atualidade e é ponto fundamental de ajuste na formulação política da nossa tendência nesse momento de Encontro. Compreendemos que esses dois movimentos – a centralidade e importância de considerar a reprodução social como um bloco de estruturação fundante do capitalismo, e a expansão de uma extrema direita que encara direitos dos sujeitos implicados e desfavorecidos por essa estrutura como inimigos de uma ideologia de preservação da moralidade e estrutura familiar – precisam ser formulados como aspectos históricos e conjunturais que interagem entre si e dão senhas para uma interpretação mais avançada do período histórico que vivenciamos, como também das tarefas que esse período apresentam para as organizações que travam luta contra o reacionarismo que ainda avança e com truculência sobre a vida e autonomia de quem produz e reproduz a vida e suas condições de realização parcial ou plena em sociedade. Fomos interrompidas de crescente processo de contestação dessas normas táticas impostas à partir da divisão dos papéis de gênero, seja a partir do movimento feminista, seja a partir de iniciativas de Estado que reconheciam e sinalizaram elementos mínimos de seguridade diante dessas disparidades de acesso e participação em direitos constitutivos, e passamos a condicionar nossa militância (como o foi com todo campo democrático) a concentrar forças em reter e reduzir danos nas investidas de desmontes que sofremos a partir de 2015, mais marcadamente.
Em menos de 10 anos observamos a direita tradicional e a extrema direita se agruparem em torno de bandeiras de enfrentamento conservador que, é necessário reconhecer, ganharam muito terreno no debate popular e na opinião pública como um todo. Em 2013, o então deputado federal Eduardo Cunha apresenta um PL que manobra o uso de contraceptivos de emergência para o campo do Código Penal e que passaria a enquadrar o uso da pílula do dia seguinte como prática de abortamento. A reação do movimento social à essa manobra foi um dos marcos recentes mais significativos para a ampliação da presença e influência do PSOL junto às feministas, pela nossa disposição e acúmulo histórico sobre a pauta. O estatuto do nascituro, que é outra manobra conservadora para inserir na Constituição direitos de cidadão à fetos em gestação, e que tramita no Congresso desde 2007, é revitalizado e passa a circular em comissões especiais e segue no mesmo patamar até o ano de 2023, entre aceleramentos e obstruções com grande empenho da própria bancada do PSOL. É de 2015 também as proposições iniciais do PL escola sem partido, que foi provavelmente a maior ação parlamentar disseminada do campo conservador, tendo sido proposto e circulado em praticamente todas as casas legislativas municipais e estaduais do Brasil de lá pra cá. É necessário considerar que a bancada federal que impulsionou essas disputas – que inicia seu processo de constituição em 2006, no governo Lula 2, mas se estrutura e formaliza como Frente Parlamentar Evangélica sob a presidência de Eduardo Cunha – se tornou imensa: nessa legislatura conta com 187 deputadas/os federais, 30 senadoras/es, e é presidida nesse ciclo por um nome forte do ruralismo do TO, Eli Borges (PL). Nem todos os membros da bancada são evangélicos fundamentalistas, e a intersecção com representantes de interesses do agronegócio e da indústria armamentista é muito significativa. A aliança e unidade da bancada BBB não é meramente econômica, ou mais ainda, a investida sobre os direitos das mulheres não é somente uma guerra de pânico moral. Existe uma concepção tática desses grupos que compreende a centralidade do controle desse grupo social para cumprir com a agenda de um projeto de disputa violento e ousado. É relevante para uma localização de disputa geral com a extrema direita fugir da arapuca de que tais disputas são meramente secundárias, mas o oposto, elas são centrais para um processo de fôlego que o conservadorismo tem investido, que consiste em tensionar com as forças sociais que produziram avanços mínimos de consciência e direitos para maiorias sociais historicamente subordinadas.

I.ii. Movimento feminista brasileiro

Compreender em que momento está o movimento feminista no Brasil é um ponto complexo, com nuances e leituras divergentes. O que é consenso entre nós é que há duas energias distintas que influenciam muito o movimento: a primeira é uma crise dispersa, de alcance total no campo da esquerda, de formato e metodologia de organização e mobilização social. A segunda é que as novas subjetividades predominantes nas novas gerações de ativistas, apresentam outras disposições e características de engajamento. A segunda se atrita e alimenta a primeira, um dos maiores desafios e tarefas do nosso tempo é a reinvenção dos
modos de construir trabalho de base e consolidar a energia militante nesse novo tempo. Atualmente a Primavera não possui um movimento/organização que oriente a política de atuação feminista de forma direcionada e estruturada, nossa presença hoje se dá de forma individual ou regionalizada, ou enquanto Setorial de Mulheres – nacional e estaduais. Mapeadamente atuamos na Marcha Mundial de Mulheres, Articulação de Mulheres Brasileiras, e em algumas frentes, com maior presença hoje na Frente Pela Legalização do Aborto – nas frentes estaduais temos sido fundamentais para a ampliação da construção
nesses espaços em muitos estados, e na nacional seguimos com uma presença isolada por conta das disputas políticas entre figuras históricas ligadas ao campo petista e novas lideranças com perfil mais atual de ativismo. A Setorial ainda segue sendo um espaço que, apesar dos limites, conflitos e dificuldades, é enquadrado como nosso espaço de atuação prioritário. Esse quadro gera dois efeitos passíveis de avaliação pessimista: fomos derrotadas no Encontro de 2019 e estamos há 4 anos sob a governança de uma maioria sem política na Setorial Nacional, o que retrai avanços para nossas posições e construções, uma vez que temos travas para falar pelo espaço, bem como, temos dificuldades para efetivar a nossa política pela setorial. E a segunda questão, reforçando o já colocado no início deste parágrafo, é a ausência de um direcionamento político, não só das mulheres, mas do agrupamento de forma geral, que coloque como prioritário o fortalecimento de um espaço auto-organizado
das mulheres da Primavera. Esses limites dialogam com os aspectos gerais característicos do movimento feminista
atual e são pressionados por uma conjuntura hostil. É preciso que a tendência consiga dar um passo à frente na formulação e nas iniciativas necessárias para dar conta das tarefas impostas.
Para isso, é fundamental que haja a construção de um balanço da auto-organização das nossas mulheres, mas sobretudo da dificuldade geral de priorizar nesta a partir da construção unitária do nosso coletivo. De forma mais direta, é necessário que o coletivo da Primavera Socialista perceba e compreenda a importância dessa movimentação e que essa pauta perpassa,
estruturalmente, todos os encaminhamentos políticos tirados nesse encontro.

II. BALANÇO, AVANÇOS E POLÊMICAS: Do Ativo de Mulheres de 2020 ao 2º Encontro Nacional da Primavera, perspectivas de atuação no movimento social

Após a fundação da Primavera, realizamos um Ativo Nacional de Mulheres em janeiro de 2020, em São Paulo. Constituímos uma Coordenação Nacional de Mulheres da Primavera com uma representação por cada estado que temos o agrupamento organizado, criamos um grupo de whatsapp, realizamos algumas reuniões da CN, plenárias mais amplas e ações durante esse período de quase 4 anos. Durante o processo eleitoral propusemos e realizamos formação política para nossas companheiras que se colocaram na tarefa de serem candidatas, contudo, sabemos que podíamos ter feito mais, a pandemia nos trouxe algumas dificuldades mas faltou um certo apoio político prioritário para que pudéssemos efetuar todo o nosso planejamento. Não podemos deixar de destacar o acúmulo/avanço na nossa política em termos conseguido ter, atualmente, uma mulher da PS assumindo a presidência nacional do PSOL. Esse fato é importante para ressaltarmos a necessidade deste agrupamento se comprometer em operacionalizar/priorizar uma política que as demandas feministas, populares e interseccionais sejam a base dos debates e dos encaminhamentos que serão tirados no encontro nacional.
Nosso temário versou sobre um conjunto de temas, expectativas e possibilidades e vale assinalar que a principal polêmica e dilema que foi ali sistematizado nos atravessa até hoje: deve a Primavera optar pela construção de um movimento que atue para fora do PSOL, referenciado em nossa política, e que vá à campo disputar base e posição no movimento feminista; ou devemos considerar a possibilidade de nos aglutinarmos e construir condições de solicitação de ingresso em alguma organização já existente? De lá pra cá, realizamos ao menos um debate anual para atualizar o debate e monitorarmos entre nós a leitura sobre o impasse. Parece seguro afirmar que ainda não foram produzidas sínteses ou projetos de mediação que nos coloquem em melhores condições de deliberar por nenhuma das iniciativas. Além disso, vale abrir para as problematizações e
balanços de origem no nosso funcionamento e que parecem colaborar para a preservação do nosso impasse. A central que identificamos é o descolamento da instância das mulheres com
a Coordenação política da corrente, que em termos práticos fortalece um funcionamento que reforça uma concepção da questão de gênero como lateral à uma grande política que precisa ser priorizada. Sofremos com um vício de cultura política que precisa ser revisto e reinventado, não com o objetivo de subverter ao contrário a ordem do nosso funcionamento,
mas que seja mais atualizado e consiga no quadro geral dos elementos da política que arrancam qualquer análise ou iniciativa, também a partir do gênero. Cabe demarcar que, junto dos limites, temos amadurecimentos importantes. Nossa
concepção de feminismo vem num crescente processo de nivelação e é consolidado entre nós uma perspectiva feminista que seja popular e interseccional – socialista, sem prescindir da
centralidade das categoria de raça que hierarquiza todas as desigualdades sociais no Brasil, que aplaca toda leitura marxista devidamente nacionalizada sobre as crises do capitalismo, da
reprodução social, ao mundo do trabalho e a crise climática. Vale também reforçar que nossa concepção de gênero se expande até uma aliança umbilical com o movimento LGBTQIA+, entendendo que corpos e sexualidades dissidentes que contestam o binarismo de gênero é vitimado pelas mesmas categorias de opressão que se incidem sobre mulheres. Investindo em algum empenho em assinalar quais nossas limitações e saídas possíveis, parece correto organizar as tarefas que nos cabem nesse 2º Encontro: 1. atualizar nossa leitura do período presente para ter uma compreensão mais precisa das disputas em torno dos papéis socio-reprodutivos; 2. centralizar a práxis política da tendência a partir de uma concepção de feminismo de classe mas que seja popular e interseccional à outras formulações dos eixos estruturais da economia e sociedade; 3. avançar no debate estratégico sobre nossa atuação no movimento feminista e como processo do conjunto da Primavera e não uma tarefa politicamente isolada da mulheres da Primavera.

III. HORIZONTES DE FUTURO: Como avançar?

As possibilidades de avanço da nossa construção feminista não serão realizadas, apenas, pela nossa Coordenação Nacional de Mulheres. Está claro que, dada a complexidade do cenário e as dificuldades em formular e operar o novo diante uma conjuntura fraturada por crises de representatividade e modelos organizativos, precisa de um empenho de fôlego do conjunto da
organização. Os próximos anos apresentam oportunidades, seja na exploração de um espaço ainda não ocupado socialmente de referência política em um movimento ou lideranças que voltem a debater uma agenda positiva da luta feminista e rompa um ciclo de décadas de cultura política de denúncia e exposição de violências institucionais e sociais; seja a partir do
próprio momento de expansão e refundação que o PSOL vive e abre corredores de oportunidade para serem explorados. Contudo, os debates e as definições que emergirem do nosso 2º Encontro, sejam eles quais forem, precisarão se conectar com os desafios e ajustes apresentados acima. Outro ponto a destacar é o processo eleitoral de 2024, a conjuntura atual e que repercutiu nas últimas eleições foi de crescimento no número de mulheres eleitas, apesar de ainda ser bastante baixo em comparação a quantidade de homens eleitos e de mulheres na sociedade, inclusive pelo PSOL, nesse ponto ressaltamos que, infelizmente, a nossa organização não está acompanhando esse crescimento de espaço parlamentar ocupado por mulheres. É necessário reconhecermos isso e nos debruçarmos na perspectiva de
identificarmos caminhos e possibilidade de mudar esse cenário, uma das possibilidades é destacarmos companheiras para assumir esse protagonismo e o agrupamento se comprometer
em tirar essa linha como prioridade, dando apoio estrutural e político. Sabemos das dificuldades, mas também sabemos das possibilidades. Avancemos coletivamente!!